sábado, 25 de abril de 2009

III – SAPATOS NOVOS


Eu sentia fome e frio. Resolvi, então, que primeiro iria por bons sapatos para depois me alimentar. Queria sentar no restaurante sem ser incomodado por olhares maldosos e indiscretos que percorriam meu corpo da cabeça aos pés. Comprei, na rua São Bento, o que precisava com maior urgência, sem me esquecer dos calçados, é claro. Voltei para o apartamento do Dr. Constantino, tomei um banho, vesti roupas novas e ao calçar os sapatos senti-me confortável. Agora vou almoçar, pensei sorrindo. Desci pelo elevador e quando cheguei à calçada olhei ao meu redor e tudo parecia mais bonito, até a garoa que caia, insistentemente, dava um toque especial à paisagem. As pessoas transitavam pelas ruas e, agora, pareciam mais alegres. Sai à procura de um restaurante quando lembrei-me do Paddock Bar; dirigi-me para a avenida Lavandisca, em Moema; Sérgio Louzão, jornalista esportivo e empresário, é o seu proprietário. Ao entrar no restaurante o maitre indicou-me uma mesa, sentei-me e, sem medo de mostrar os pés, peguei o cardápio e escolhi um dos principais pratos da casa "Crepe de Camarão" e, para acompanhar, pedi água. Pessoas bem vestidas e alegres passavam pela minha mesa e alguns até sorriam para mim. Nossa! De uma hora para outra, como num toque de mágica, a minha vida havia mudado do "vinho para a água" - pensei sorrindo - por ter invertido, propositadamente, as palavras da frase. Eu estava feliz e isso não acontecia já há alguns anos. O nome do restaurante fez-me lembrar dos bons tempos de criança, quando ia com meus pais almoçar no restaurante Paddock da rua da Consolação, bem perto da avenida São Luiz. Hoje, o mesmo endereço abriga o bar-clube Royal. Lembro-me muito bem das pessoas bem vestidas tagarelando em suas mesas enquanto aguardavam o atendimento dos garçons que, agitados andavam de um lado para o outro em seus trajes preto e branco e gravata borboleta. Estava evolvido em minhas reminiscências, quando ouvi:

- Posso servi-lo senhor?

- Sim, por favor - respondi me ajeitando na cadeira.
Após a refeição voltei para o prédio onde estávamos hospedados; agora ele já não me parecia tão assustador, era somente um antigo edifício, como muitos outros da capital paulista. Ao entrar no apartamento encontrei o Cerrado que perguntou-me de imediato:

- Posso dividir o quarto com você? Sou meio diferente dos outros - explicou meio sem jeito.

- E o que te faz imaginar que também sou diferente deles? perguntei sorrindo.

- Os seus antigos sapatos - respondeu Cerrado olhando para meus pés.

- Está bem, Cerrado, podemos dividir o quarto.

À noite resolvi dar uma caminhada e convidei uma garota para o passeio, já que, provavelmente, eu ficaria no mato por um bom tempo. Divertimo-nos muito e lá pelas duas da manhã eu já estava deitado em uma cama confortável no apartamento da Barra Funda.

As 9h00 estávamos todos reunidos e esse segundo encontro foi mais natural. Conversamos alegres e alguns até arriscavam algumas tímidas brincadeiras.
Antônio Cerrado pediu atenção e com ar solene nos disse:

- Amanhã, neste mesmo horário, estaremos de partida para Cuiabá, onde ficaremos por dois dias e, em seguida, em um helicóptero, iremos para Barra do Garças e, finalmente, até às proximidades da Serra do Roncador. Após esse vôo, a viagem fica por nossa conta e risco, faremos o trajeto a pé. Entretanto, posso afirmar-lhes que já estive por lá diversas vezes e conheço muito bem aquela região. E, embora não acredite que encontremos algo significativo, quero que saibam que tenho condição de levá-los por lugares nunca visitados por nenhum ser humano. E digo mais, é bom que não tenham medo de cobras, escorpiões e outros animais, inclusive onças, pois eles nos farão companhia nas noites solitárias. Levem apenas o essencial - disse com firmeza.

- Pelo jeito, resolveu liderar a expedição - falou o biólogo deixando transparecer um pouquinho de ciúme da atitude firme do sertanista.

- Estou sendo pago para isso. Espero que todos colaborem para que eu possa mantê-los vivos e não questionem minhas ordens para não terem o mesmo final que o coronel inglês, portanto, não me causem transtornos. Várias expedições de resgate foram organizadas e nenhuma obteve sucesso - prosseguiu o sertanista em tom aborrecido - tudo o que conseguiram saber foram relatos dos nativos que contaram que foram mortos por indígenas hostis ou que animais selvagens os atacaram. Há quem diga, numa versão mais fantasiosa, que Fawcett teria perdido a memória e estaria vivendo como chefe de uma tribo de canibais, ainda alguns falam que ele teria encontrado a cidade perdida e foram impedidos de retornar para não divulgar a existência do local e o segredo ficar mantido. Como podem ver, é complicado; 100 exploradores morreram na tentativa de encontrar membros da expedição, além do desaparecimento, de três expedições de resgate, na mesma região, que continua, até hoje, praticamente inexplorada.
O silêncio se instalou na sala e pude notar o olhar de satisfação do Dr. Constantino ao observar a postura do líder Antônio Cerrado. De certa forma, também fiquei satisfeito; a simplicidade de Cerrado fazia com que ele me passasse mais confiança que os outros. Comecei a tomar gosto por aquela misteriosa aventura, e a achar o tema fascinante, passei, então a registrar cada momento com textos e fotos. O biólogo, talvez por ainda não ter o que fazer, parecia mais irritado; o físico, ainda tentava, assim como o instrumentista, entender qual era a missão de cada um nessa viagem.
Dr. Constantino, mais uma vez, saiu sem explicar o que mais queríamos saber: o que estávamos buscando.

Também resolvi sair um pouco e pude constatar que o prédio estava quase que totalmente desabitado. Parecia que havia sido alugado somente para que nos reuníssemos ali. Achava tudo muito estranho: por que tanto segredo? por que sua explanação sobre Fawcett foi tão superficial? Ficaria atento, porém com uma grana alta em minha conta bancária não era interessante questionar muito, sorri satisfeito voltando às escritas. De repente, Azevedo virou-se para mim com o dedo em riste perguntando:

- Você! Por que nos observa e escreve? O que está escrevendo sobre nós?

- Estou fazendo meu trabalho, é para isso que sou pago, lembra? Porém, certamente, seu trabalho não é ler o que escrevo; em outras palavras, o que escrevo não é de sua conta - respondi com ironia.
Antônio Cerrado demonstrou ter gostado da minha resposta ao biólogo, mas interrompeu nossa discussão dizendo:

- Se queremos sobreviver a essa aventura é bom que pelo menos nos suportemos. Na mata nossos nervos estarão à flor da pele e estaremos muito mais propícios às brigas e discussões, então, é melhor administrarmos com paciência nossas relações agora para que, mais tarde, não nos matemos por lá - pediu mudando rapidamente de assunto:

- Bonitos seus sapatos, Montezuma!

- Comprei uns três pares! Posso saber o que você comprou Cerrado?

- Cuecas - respondeu sorrindo.

Simpatizei-me com o sertanista. Embora mostrasse simplicidade e, às vezes, fosse um tanto grosseiro, percebia -se que tinha certa cultura e objetividade, demonstrando segurança no que fazia. Mas eu ainda o achava um tanto centralizador; cuidou de todos os preparativos da viagem sem pedir ajuda ou opinião a qualquer um de nós. Percebi que, embora respeitasse os outros contratados, não simpatizava com nenhum deles. Informalmente, só conversava comigo, e era insistente em pilhar lembrando dos meus velhos sapatos; talvez lhe faltasse um bom repertório de piadas. O fato é que me agradava ter alguém mais próximo de mim nessa aventura.

Algumas coisas ainda me eram bastante misteriosas, por exemplo: o porquê do músico nessa viagem. Certamente não seria para animar saraus em noites de luar. Por alguns instantes divaguei sobre a aventura e rapidamente adormeci.

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