domingo, 26 de abril de 2009

VI - ELEANORA


As idéias giravam no meu cérebro sem cessar, não conseguiria dormir, optei por tomar um banho e descer para estirar as pernas, Fui até o bar do hotel e pedi um pingado (café com leite) e um bauru. Enquanto saboreava o sanduíche vi uma bela moça, aparentando cerca de 30 anos, na varanda olhando para as flores que salpicavam com cores o verde do jardim. Fiquei observando-a até que desapareceu por entre as plantas que enfeitavam o pátio do hotel. Imaginei que ela seria uma das colaboradoras do Constantino. Nossa! Seria bem legal viajar em companhia de uma gata daquelas. Resolvi montar um cavalo e dar um passeio pelos arredores do hotel; cavalguei pela trilha maior até o seu final. Mais à frente, uma trilha menor seguia até umas rochas próximas a um aglomerado de árvores e, instintivamente, galopei para lá. Voltaria logo para o hotel, pois não queria passar por outro constrangimento de chegar atrasado para mais um compromisso: o jantar.

Ao chegar nas rochas, apeei do cavalo e amarrei suas rédeas em uma pequena árvore. Andei por alguns minutos e ouvi barulho de água do outro lado da trilha, próximo a mata. Mais à frente avistei uma pequena cachoeira que desaguava num córrego cristalino. Tudo era, realmente, muito bonito. Abaixei-me, bebi um pouco daquela água pura e ao levantar a cabeça senti o meu corpo estremecer: ela estava lá, estirada nas pedras completamente nua; os cabelos castanhos, longos e levemente encaracolados envolviam parte de seus ombros; a pele bronzeada com gotas de água brilhando ao sol deixava-a ainda mais bela. Meu Deus! Prendi a respiração e fiquei parado com medo de, algum ruído, estragar aquele momento. Não sei por quantos minutos fiquei ali admirando-a até que uma voz trouxe-me de volta à realidade:

- Pode pegar as minha roupas? Estão do seu lado.

Uma tremedeira dos diabos tomou conta do meu corpo ao ouvi-la; olhei à minha volta e vi suas roupas penduradas em um galho: peguei-as e caminhei lentamente em direção à ela. Estiquei o braço para entregá-las e, em vão, procurei não olhar diretamente para aquele monumento. Pegou a roupa com um ar malicioso, se vestiu e ficou a me observar por alguns instantes.

- Você é da expedição? - perguntou demonstrando pouco interesse.

- Sim, vou documentar tudo. Sou jornalista e você?

- Historiadora Eleanora Canúh e estou aqui há alguns dias, cheguei antes de vocês.

- É, o Dr. Constantino comentou que você e a arqueóloga estariam aqui. Meu nome é Montezuma e confesso que fiquei surpreso, não é sempre que se cruza com uma sereia, disse eu com ar abobalhado.

- Está na hora de voltar para o hotel, vai ficar aí parado?

- Bem que eu gostaria, mas temos compromisso para o jantar... não é?

Chegamos ao hotel e cada um foi para o seu aposento. Eu estava ansioso por um banho, mas ainda maravilhado com a visão da Eleanora. Cerrado, encostado em sua cama, assistia a televisão. Comentei:

- Antônio, saí para cavalgar e encontrei uma pequena cachoeira, mas você não imagina quem estava lá!

- Imagino sim, meu caro amigo. Pela sua cara você só pode ter visto Eleanora, nua e linda, após o mergulho, estirada como uma sereia nas pedras.

- Você também esteve lá? - perguntei embasbacado.

- Não companheiro, mas sei que ela é apaixonada por água e esta é a sua maneira peculiar de se relacionar com a natureza.

- Então você a conhece?

- Claro, foi dessa mesma maneira que a conheci e me apaixonei por essa bela mulher - lembrou o sertanista.

- Então vocês...

- Não, não! Tudo é passado, caminho livre, amigo - disse acrescentando: Ela te pediu as roupas?

- Sim. Por quê?

- Você entregou as roupas a ela? - perguntou Cerrado com ar zombeteiro.

- Sim! Por quê? - respondi sem entender o questionamento dele.

- Prá um jornalista, você é bastante ingênuo. Ela te deu um sinal e você não entendeu nada. Não sei se terá outra chance ... ela é muito temperamental - comentou.

- Não fala sério..., não é Cerrado?

- Veja bem Montezuma, se ela não tivesse simpatizado com você teria te expulsado de lá. Eleanora traz sempre consigo, uma arma para se proteger. Ao te pedir as roupas, ela o autorizou a aproximar-se. Dançou, amigo, mas teremos outras cachoeiras pelo caminho.

Me dirigi ao banheiro pensando no que disse o Cerrado. Após o banho perguntei:

- Você não vai descer para jantar com o pessoal?

- Sim, vou, também, matar a saudade da Eleanora - respondeu o sertanista.
Aprendi a gostar do meu companheiro Cerrado, mas a superioridade que ele impunha quando falava da Eleanora me deixava irritado. Parecia que eu estava sempre um passo atrás dele.

V – MATO GROSSO


Desembarcamos no aeroporto Marechal Rondon, na cidade de Várzea Grande, fato que levou alguém a protestar:

- Não íamos descer em Cuiabá?

Prontamente respondi:

- É só atravessarmos a ponte sobre o rio Cuiabá e estaremos na capital. Os municípios de Cuiabá e Várzea Grande são separadas apenas pelo rio Cuiabá - ensinei.

Um carro espaçoso e confortável esperava para nos levar ao hotel. Ficamos sabendo, pouco antes de chegar à hospedaria, que as duas mulheres que completariam nossa equipe já se encontravam ali. Dr. Constantino procurou falar com elas, enquanto fomos para nossos aposentos. Era um hotel fazenda muito agradável e aconchegante. Gostei do ar puro e das belas plantas que exibiam suas folhas verdes mescladas de um dourado ocasionado pela luz do sol. Ficou acertado entre nós que desceríamos apenas na hora do jantar, ocasião em que seríamos apresentados às duas moças. A curiosidade me inquietava e mais uma vez eu dividiria o quarto com o sertanista. O tempo estava seco e, da janela do apartamento, ao olhar para o horizonte, podia ver sinais de fumaça e poeira, mas, a paisagem mais imediata era verde e viva por estar constantemente molhada pelo sistema de irrigação do hotel.

- Quando falam que Cuiabá é quente não estão brincando: agora deve estar fazendo uns 38º graus - comentou Cerrado passando a mão pela testa - o que me preocupa é que esta expedição está fora de época; deveria ter sido feita mais cedo. A qualquer hora pode começar as chuvas e se tem coisa que não combina, amigo, é expedição em mata com chuva: os perigos se multiplicam, uma gruta pode encher em questão de minutos, isto sem falar nas trilhas que, simplesmente, deixam de existir ...

- Você argumentou sobre isso com o Constantino? - indaguei;

- Tentei ... mas, de acordo com o professor e o tal físico, este é o período propício para que eles encontrem o que procuram - respondeu com ar de cansaço.

- Então o físico sabe o que está fazendo aqui - argumentei.

- Pelo que pude notar ele sabe tudo sobre esta viagem. Mas não se consegue arrancar nada dele, nem mesmo um bom dia - replicou.

- Você também sabe tudo, não é? - investiguei.

- Talvez um pouco mais que os outros, mas exatamente o que procuram não sei. Às vezes penso que o velho acredita em vida subterrânea, um mundo embaixo da terra com pessoas ainda mais evoluídas que a nossa civilização. Coisas assim de doido, sabe ... - disse apontando o dedo indicador para a cabeça.

- Nossa! Por que não pensei nessa eventualidade? Isso explica a presença do físico! Não procuram um mundo subterrâneo, mas sim uma passagem subterrânea! - parecia que finalmente tudo se tornava claro em minha mente.

- Como? Passagem para onde? Prá algum vale perdido? Com tantos satélites no espaço, se existisse algum já teria sido descoberto. Não pode ser - argumentou discordando, meu companheiro de quarto.

- Vale perdido, talvez, mas em outra dimensão, eles procuram um portal! Um portal para outra dimensão! - respondi olhando para o vazio.

- Acho que o calor fritou seus miolos. É melhor que descanse um pouco. Outra dimensão ... cada uma ... falou irritado o sertanista.

IV – A VIAGEM


Às 9h40, do dia seguinte, estávamos prontos para a partida. O sol brilhava intensamente parecendo nos desejar boa viagem. O Dr. Constantino, bem humorado, saboreava um bom vinho, e conversava animadamente com o músico italiano; enquanto os outros tomavam, por opção, cachaça e cerveja. O fato de não ter refrigerante a bordo, me deixava muito irritado. Fiquei mal humorado e procurei me concentrar nas escritas.

O avião, um jatinho, oferecia muito conforto e, por um instante, pensei que havia sido providencial ter escrito artigos sobre a Serra do Roncador; escrevi tantas coisa interessantes e o retorno veio justamente de onde não esperava. Sem me dar conta gritei entusiasmado:

- Vivas ao mister Fawcett!

Fui seguido por um coro de vozes amolecidas pelo álcool:

- Viiiivas!

sábado, 25 de abril de 2009

III – SAPATOS NOVOS


Eu sentia fome e frio. Resolvi, então, que primeiro iria por bons sapatos para depois me alimentar. Queria sentar no restaurante sem ser incomodado por olhares maldosos e indiscretos que percorriam meu corpo da cabeça aos pés. Comprei, na rua São Bento, o que precisava com maior urgência, sem me esquecer dos calçados, é claro. Voltei para o apartamento do Dr. Constantino, tomei um banho, vesti roupas novas e ao calçar os sapatos senti-me confortável. Agora vou almoçar, pensei sorrindo. Desci pelo elevador e quando cheguei à calçada olhei ao meu redor e tudo parecia mais bonito, até a garoa que caia, insistentemente, dava um toque especial à paisagem. As pessoas transitavam pelas ruas e, agora, pareciam mais alegres. Sai à procura de um restaurante quando lembrei-me do Paddock Bar; dirigi-me para a avenida Lavandisca, em Moema; Sérgio Louzão, jornalista esportivo e empresário, é o seu proprietário. Ao entrar no restaurante o maitre indicou-me uma mesa, sentei-me e, sem medo de mostrar os pés, peguei o cardápio e escolhi um dos principais pratos da casa "Crepe de Camarão" e, para acompanhar, pedi água. Pessoas bem vestidas e alegres passavam pela minha mesa e alguns até sorriam para mim. Nossa! De uma hora para outra, como num toque de mágica, a minha vida havia mudado do "vinho para a água" - pensei sorrindo - por ter invertido, propositadamente, as palavras da frase. Eu estava feliz e isso não acontecia já há alguns anos. O nome do restaurante fez-me lembrar dos bons tempos de criança, quando ia com meus pais almoçar no restaurante Paddock da rua da Consolação, bem perto da avenida São Luiz. Hoje, o mesmo endereço abriga o bar-clube Royal. Lembro-me muito bem das pessoas bem vestidas tagarelando em suas mesas enquanto aguardavam o atendimento dos garçons que, agitados andavam de um lado para o outro em seus trajes preto e branco e gravata borboleta. Estava evolvido em minhas reminiscências, quando ouvi:

- Posso servi-lo senhor?

- Sim, por favor - respondi me ajeitando na cadeira.
Após a refeição voltei para o prédio onde estávamos hospedados; agora ele já não me parecia tão assustador, era somente um antigo edifício, como muitos outros da capital paulista. Ao entrar no apartamento encontrei o Cerrado que perguntou-me de imediato:

- Posso dividir o quarto com você? Sou meio diferente dos outros - explicou meio sem jeito.

- E o que te faz imaginar que também sou diferente deles? perguntei sorrindo.

- Os seus antigos sapatos - respondeu Cerrado olhando para meus pés.

- Está bem, Cerrado, podemos dividir o quarto.

À noite resolvi dar uma caminhada e convidei uma garota para o passeio, já que, provavelmente, eu ficaria no mato por um bom tempo. Divertimo-nos muito e lá pelas duas da manhã eu já estava deitado em uma cama confortável no apartamento da Barra Funda.

As 9h00 estávamos todos reunidos e esse segundo encontro foi mais natural. Conversamos alegres e alguns até arriscavam algumas tímidas brincadeiras.
Antônio Cerrado pediu atenção e com ar solene nos disse:

- Amanhã, neste mesmo horário, estaremos de partida para Cuiabá, onde ficaremos por dois dias e, em seguida, em um helicóptero, iremos para Barra do Garças e, finalmente, até às proximidades da Serra do Roncador. Após esse vôo, a viagem fica por nossa conta e risco, faremos o trajeto a pé. Entretanto, posso afirmar-lhes que já estive por lá diversas vezes e conheço muito bem aquela região. E, embora não acredite que encontremos algo significativo, quero que saibam que tenho condição de levá-los por lugares nunca visitados por nenhum ser humano. E digo mais, é bom que não tenham medo de cobras, escorpiões e outros animais, inclusive onças, pois eles nos farão companhia nas noites solitárias. Levem apenas o essencial - disse com firmeza.

- Pelo jeito, resolveu liderar a expedição - falou o biólogo deixando transparecer um pouquinho de ciúme da atitude firme do sertanista.

- Estou sendo pago para isso. Espero que todos colaborem para que eu possa mantê-los vivos e não questionem minhas ordens para não terem o mesmo final que o coronel inglês, portanto, não me causem transtornos. Várias expedições de resgate foram organizadas e nenhuma obteve sucesso - prosseguiu o sertanista em tom aborrecido - tudo o que conseguiram saber foram relatos dos nativos que contaram que foram mortos por indígenas hostis ou que animais selvagens os atacaram. Há quem diga, numa versão mais fantasiosa, que Fawcett teria perdido a memória e estaria vivendo como chefe de uma tribo de canibais, ainda alguns falam que ele teria encontrado a cidade perdida e foram impedidos de retornar para não divulgar a existência do local e o segredo ficar mantido. Como podem ver, é complicado; 100 exploradores morreram na tentativa de encontrar membros da expedição, além do desaparecimento, de três expedições de resgate, na mesma região, que continua, até hoje, praticamente inexplorada.
O silêncio se instalou na sala e pude notar o olhar de satisfação do Dr. Constantino ao observar a postura do líder Antônio Cerrado. De certa forma, também fiquei satisfeito; a simplicidade de Cerrado fazia com que ele me passasse mais confiança que os outros. Comecei a tomar gosto por aquela misteriosa aventura, e a achar o tema fascinante, passei, então a registrar cada momento com textos e fotos. O biólogo, talvez por ainda não ter o que fazer, parecia mais irritado; o físico, ainda tentava, assim como o instrumentista, entender qual era a missão de cada um nessa viagem.
Dr. Constantino, mais uma vez, saiu sem explicar o que mais queríamos saber: o que estávamos buscando.

Também resolvi sair um pouco e pude constatar que o prédio estava quase que totalmente desabitado. Parecia que havia sido alugado somente para que nos reuníssemos ali. Achava tudo muito estranho: por que tanto segredo? por que sua explanação sobre Fawcett foi tão superficial? Ficaria atento, porém com uma grana alta em minha conta bancária não era interessante questionar muito, sorri satisfeito voltando às escritas. De repente, Azevedo virou-se para mim com o dedo em riste perguntando:

- Você! Por que nos observa e escreve? O que está escrevendo sobre nós?

- Estou fazendo meu trabalho, é para isso que sou pago, lembra? Porém, certamente, seu trabalho não é ler o que escrevo; em outras palavras, o que escrevo não é de sua conta - respondi com ironia.
Antônio Cerrado demonstrou ter gostado da minha resposta ao biólogo, mas interrompeu nossa discussão dizendo:

- Se queremos sobreviver a essa aventura é bom que pelo menos nos suportemos. Na mata nossos nervos estarão à flor da pele e estaremos muito mais propícios às brigas e discussões, então, é melhor administrarmos com paciência nossas relações agora para que, mais tarde, não nos matemos por lá - pediu mudando rapidamente de assunto:

- Bonitos seus sapatos, Montezuma!

- Comprei uns três pares! Posso saber o que você comprou Cerrado?

- Cuecas - respondeu sorrindo.

Simpatizei-me com o sertanista. Embora mostrasse simplicidade e, às vezes, fosse um tanto grosseiro, percebia -se que tinha certa cultura e objetividade, demonstrando segurança no que fazia. Mas eu ainda o achava um tanto centralizador; cuidou de todos os preparativos da viagem sem pedir ajuda ou opinião a qualquer um de nós. Percebi que, embora respeitasse os outros contratados, não simpatizava com nenhum deles. Informalmente, só conversava comigo, e era insistente em pilhar lembrando dos meus velhos sapatos; talvez lhe faltasse um bom repertório de piadas. O fato é que me agradava ter alguém mais próximo de mim nessa aventura.

Algumas coisas ainda me eram bastante misteriosas, por exemplo: o porquê do músico nessa viagem. Certamente não seria para animar saraus em noites de luar. Por alguns instantes divaguei sobre a aventura e rapidamente adormeci.

sábado, 11 de abril de 2009

II - O ENCONTRO


Numa sala grande, entre mapas, lousas e projetores, além de uma grande mesa para reunião, estavam cinco homens conversando acaloradamente. Um deles, aparentando entre 65 e 70 anos, usava terno cinza de corte perfeito, sapatos pretos de pelica e seus cabelos eram bastante grisalhos,
voltou-se para mim e indagou:

- Tem hábito de chegar atrasado em seus compromissos sr. Montezuma? - mas, parecendo arrependido do comentário acrescentou:

- Esquece… eu já esperava por isso. Sou o Dr. Constantino, seu contratante - disse - apresentando-me as pessoas que ali estavam.

- Estes são: o músico e instrumentista italiano, Felipo Martinelli; o físico americano Bob Carlson, o sertanista Antônio Cerrado e, por fim, o biólogo Sérgio Azevedo - voltou-se então para os apresentados e disse:

- Senhores, este é o jornalista escritor Montezuma de Albuquerque.
Acenaram-me com a cabeça como se desejassem boas vindas. Tive a impressão que olhavam para mim com certa curiosidade. “Ah! Como eu gostaria de saber o que se passava pela cabeça de cada um deles!” Porém, percebi que o único que realmente não estava por dentro de nada do estava acontecendo, era eu. Então, arrisquei uma pergunta:

- Não entendi o que pode haver em comum entre um físico, um sertanista, um instrumentista, um biólogo e um escritor. O que deseja, Dr. Constantino, com esse grupo tão heterogêneo? - perguntei ansioso por uma resposta que se adequassse à situação.

- Tudo a seu tempo, Sr. Montezuma. Mas posso afirmar-lhe que todos serão úteis na hora certa. Mas, já vamos falar sobre o que interessa… tome um café e se acalme - disse o nosso contratante.

Tomamos um café enquanto era discutido futebol, carnaval e política ambiental. Todos pareciam descontraídos, mas, eu, no entanto, não conseguia me interessar por aquela conversa descompromissada. Só uma coisa me interessava: eu queria saber se sairia dali com um emprego garantido. Olhei para eles e percebi que Felipo Martinelli, ao falar, gesticulava muito fazendo com que seu cabelo castanho escuro caísse sobre sua testa, aparentava 46 anos de idade e tinha estatura mediana; Bob Carlson vestia um um fino paletó esporte com couro nos cotovelos e calças rancheiras, tinha os cabelos loiros e a pele tão clara que deixava aparecer algumas sardas, era alto e quando sorria fechava os olhos azulados; Antônio Cerrado vestia jeans, seus cabelos eram pretos e lisos, a pele morena e queimada pelo sol mostrava que estava acostumado a andar pelas regiões mais quentes do país, magro e alto não fazia tipo atlético; Sérgio Azevedo aparentava ser o mais jovem; os cabelos eram levemente ondulados, estatura baixa, usava óculos de grau com aros escuros, sorria amavelmente quando lhe dirigiam a palavra; eu, com meu traje e calçados puídos pelo uso contínuo, sentia-me bastante desconfortável. Um bom banho de loja e o problema estaria resolvido.

- Onde fica o banheiro - perguntei.

- No corredor à sua direita, última porta - disse Constantino.

Agradeci e segui pelo caminho indicado. Ao abrir a porta do banheiro deparei-me com um grande espelho numa das paredes; olhei atentamente para a figura refletida nele e pude ver um homem com 44 anos de idade, de boa estatura, cabelos castanhos tão claros que mais pareciam louros, com dentes alvos e perfeitos mas, a roupa que usava não ajudava muito na aparência. Voltei a pensar na vida difícil e pensei: “tenho que conseguir este emprego, caso contrário, não sei o que será de mim“.

Meus pensamentos foram interrompidos:

- Senhores, queiram se aproximar, por favor - pediu o Dr. Constantino apontando para a grande mesa e acrescentando: chegou a hora de saberem o motivo dessa nossa reunião - ligou um projetor e começou a explanar o que aconteceria dali para a frente.

- Antes que me esqueça - esclareceu - vamos para Mato Grosso e, em Cuiabá, se juntarão ao nosso grupo mais duas pessoas: uma historiadora e arqueóloga e uma geóloga, renomadas. Bem, vamos ao que interessa - prosseguiu ele - em 1925, aproximadamente, desapareceu, no estado de Mato Grosso, o coronel Percy Harrison Fawcett. Acredito que, pelo que já foi divulgado, devem conhecer a história, mas faço questão de reavivá-la em suas mentes. Fawcett era um arqueólogo independente, cheio de qualidades; um militar inglês com a aventura em suas veias, não fugia de obstáculos e não lhe faltava coragem; um homem místico e, sem dúvida, um dos maiores aventureiros da história real. A procura de cidades perdidas, Fawcett se embrenhou pelas matas fechadas e, próximo a um lugar denominado Serra do Roncador, desapareceu sem deixar vestígios. Fawcett acreditava que o Centro Oeste brasileiro havia sido o cenário do naufrágio do Continente da Atlântida, - disse o Dr. Constantino afastando-se para mais um café.

“Nossa! Em pleno século 21 um maluco milionário arregimenta especialistas em diversas áreas e lança-os em uma ridícula aventura de pura ficção. É incrível! Como posso me meter em tantas situações embaraçosas?” - pensei, perplexo. E então resolvi perguntar:

- Desculpe-me Dr. Constantino, mas quero crer que o senhor não pretende nos convidar para brincar de Indiana Jones, não é?

- Exatamente sr. Montezuma! Vocês foram escolhidos a dedo para essa jornada. Conheço cada um dos participantes deste evento; sei tudo sobre a vida de cada um e, tem mais, já providenciei um depósito bancário no valor de 500 mil reais para cada um de vocês e mais 500 mil serão, individualmente, depositados quando este trabalho tiver chegado ao seu final. Agora, se não se incomoda sr. Montezuma, gostaria de continuar a explanação, embora o senhor já tenha escrito muitas matérias e artigos sobre este assunto, disse em tom de quem gostaria de silêncio.

- O que eu fiz são textos literários, especulações que fazem com que esgotem os jornais nas bancas de revistas … - fui cortado imediatamente pelo Dr. Constantino que disse com sotaque inglês bem acentuado:

- Sr. Montezuma, conheço a sua situação deplorável. Aqui está o recibo do depósito feito em sua conta; com esse dinheiro poderá, por exemplo, comprar sapatos novos. Naquela caixa sobre a mesa está um notebock e uma câmera digital de última tecnologia, se houver interesse em nos seguir, pegue seu material e em silêncio comece a registrar nossa aventura, pois ela já começou.

Boquiaberto e constrangido, tentei esconder os pés e olhei, sem acreditar, para quantidade de zeros que haviam naquele recibo. “Nossa!” Não é que o velhote depositou mesmo os 500 mil reais! Abri a caixa e deixei o ancião mal humorado dar continuidade à suas elocuções fantasiosas. Pude perceber que quando o velho “manda chuva” falou que havia feito depósito em nossas contas, meus companheiros ficaram tão espantados que nem perceberam a fala do dr. Constantino numa referência, constrangedora, aos meus sapatos. Pensando bem, em alguns dias, no máximo um mês, eu estaria de volta e poderia novamente ter uma vida normal. Já fazia planos para o futuro: um apartamento, TV a cabo, internet, festas e …. mulheres! Nesse momento passei a incentivar a aventura. Eu estava empregado e ganhando muito bem, não havia motivo para reclamar.

- Bem, agora que o sr. dos sapatos risonhos resolveu prestar atenção, darei continuidade à palestra - alfinetou Constantino. O físico Bob Carlson coçou a cabeça e piscando os olhos pequenos e claros perguntou com sotaque americano:

- Quais os indícios da existência dessas cidades perdidas que levaram mister Fawcett a essa viagem sem volta?



- O coronel Percy Harrison Fawcett era amigo de grandes escritores, entre eles, Arthur Conan Doyle e Sir Rider Harggard que, em 1911, presenteou-lhe com uma estranha estatueta, de basalto negro que, possivelmente, seria proveniente de uma dessas cidades perdidas pelo interior do Brasil. Posteriormente, o próprio Fawcett teria encontrado diversas ruínas, na selva amazônica, que seriam indícios de postos avançados de uma cidade-mãe - esclareceu Constantino.

O instrumentista italiano Felipo Martinelli se mostrava inquieto e transpirava muito, talvez preocupado em não ser tão útil à expedição e, consequentemente, perder parte da bolada. Não sossegou enquanto não esclareceu a sua situação, perguntando:

- Desculpe-me - disse ele dirigindo-se ao Dr. Constantino - entendo a participação de todos os companheiros nesta viagem, no entanto, não consigo, por mais que eu tente, encaixar-me nela … sou um músico e ….
- Constantino cortou-lhe a fala:

- Todos aqui se encaixam perfeitamente na nossa aventura, inclusive você Felipo. Pode ficar tranquilo. Vou parar por hoje, todos devem estar ansiosos para tomarem providências particulares e, também, gastar um pouco da fortuna que acabam de receber. Enfim, façam tudo o que tiverem de fazer, hoje, pois a partir de amanhã, às 9h00, não nos separaremos mais. Tem mais … tenho dois quartos preparados para passarem a noite aqui e, assim sendo, ficarão dois de vocês em um, e três no outro quarto, organizem-se e bom descando - disse encerrando sua fala naquele dia.


I - SÃO PAULO


A garoa fina e fria que caía naquela manhã deixava o dia com uma tonalidade cinza; o contorno dos prédios umidecidos se acentuava dando à cidade ar sombrio e triste. As pessoas, fechadas em seus pensamentos, cruzavam-se nas ruas sem cumprimentarem uma às outras. Eu caminhava apressado enquanto praguejava e apalpava meu agasalho que já começava a se encharcar.Olhei para o relógio exposto no meio da praça e, aborrecido, vi que estava atrasado para meu compromisso: os ponteiros indicavam 8h45 e eu tinha que comparecer às 8h30 em determinado endereço na Barra Funda, próximo à Praça Marechal Deodoro. A chuva poderia continuar nos próximos dias, pois, o clima em São Paulo é imprevisível.

Estava desempregado há dois anos e, após seis meses de busca incessante, quando consiguira uma entrevista, chegaria atrasado - pensei aborrecido. A minha situação era desesperadora e eu não podia perder mais essa chance. Além disso, fazia um ano que eu não bebia e a falta da bebida começava, verdadeiramente, me incomodar. A garganta estava seca, mas eu não cederia. Iria conseguir o emprego e voltaria a publicar meus artigos e crônicas. Esse pensamento me animou e apressei os passos.

Enfiei a mão no bolso e tirei um cartão de visitas já um pouco umidecido e voltei a praguejar: "droga de chuva, além de atrasado, não estou nem um pouco apresentável". Parei em frente ao prédio desbotado e conferi o número 2.045. Sim era esse o prédio. Era uma construção antiga, com a pintura flagelada pelo tempo. Olhei à minha volta e pareceu-me estar dentro de uma foto em tom cépia do começo do século XX. Sinceramente, o prédio não passava credibilidade.

Há alguns anos, quando meu trabalho era disputado pelas editoras e jornais, nem teria tomado conhecimento deste estranho convite. Mas, naquele momento, a realidade era outra: meus bolsos estavam completamente vazios, eu não tinha um centavo e, a água das poças nas calçadas entravam pelos furos nas solas dos meus sapatos fazendo com que eu sentisse um grande desconforto, deixando meus pés gelados: " tinha que dar certo!"

Naquele instante, pensei em como a vida era de grande frieza e abstração e, em como o tempo agira como meu algoz: dezenas de anos trabalhando duro, conquistando pouco a pouco meu espaço, adquirindo bens, gozando de grande respeito por parte da sociedade paulistana; convidado para as principais festas e eventos, cercado de amigos e de mulheres. De repente, tudo isso escapou por entre meus dedos. A lei da gravidade já não era só física, era, também, metafórica: minha queda social fora rápida como a de um corpo que cai do último andar de um edifício. Porém, voltar a ser quem fui, me parecia muito lento, como alguém que sobe este mesmo edifício pelas escadarias.

Assim havia sido minha vida até então: iludido pelo sucesso, não percebia que um copo de vodka me acompanhava e, em determinado momento, já me dominava completamente; jogou-me em um espaço abissal, no qual caí em uma velocidade estonteante. No fundo do poço, vi-me sozinho: um eremita em uma cidade com 15 milhões de habitantes. Tornei-me um invisível ao perder o magnetismo que o dinheiro e o sucesso me proporcionavam. Lembrando Caetano cantarolei em tom de ironia: "a força da grana que ergue e destrói coisas belas".

Entrei e, já no prédio, mesmo com as mãos, tentei dar um jeito nos cabelos, na tentativa de uma melhor aparência. Passei pela portaria sem recepcionista, escura e mal iluminada, e fui direto para o elevador que, também, não tinha ascensorista. De repente, um pensamento ruim tomou-me de assalto: "Não será uma armadilha preparada pelos meus credores?" Fiquei temeroso, mas estava decidido a ir em frente: "Seja o que Deus quiser!" Cheguei ao 8º andar sem cruzar com uma viva alma. Um frio percorreu a minha espinha.

No corredor escuro procurei o número 83 e lá estava ele: na porta de madeira em verniz escuro e sem brilho; parecia que o algarismo era a senha guardiã de algum segredo. Hesitei por um instante e toquei a campainha; afinal, só poderia saber o que esperava por mim, se passasse por aquela porta. Atendeu-me um senhor, elegantemente vestido, com voz rouca e em sotaque estrangeiro falou-me:- Entre! Engoli em seco e entrei.