domingo, 9 de agosto de 2009

XXIII- ASHNA




Vimos, vindo em nossa direção, um índio forte que mais parecia um guerreiro porém, não trazia armas. Seus olhos eram puxados, seus cabelos negros e escorridos, o peito nu exibia seus músculos bem contornados. Uns tímidos adereços tentavam, em vão, encobrir suas partes íntimas. Ao se aproximar saudou-nos:

- Que o Criador da natureza esteja com todos. Sou Ashna e fui enviado por Ambhar, rei da cidade de Xamhur, para prestar-lhe informações sobre este mundo que para vocês é estranho.
Respeitando a hierarquia que Enoth tinha nos instituído, deixamos que o nosso rei-ancião
Constantino respondesse ao jovem indígena.

- Que o Criador esteja com você, Ashna. Estamos curiosos para saber sobre seu mundo, suas leis e seus costumes.

Cerrado antecipou-se e sem se incomodar com protocolos foi dizendo ao índio:

- Você disse que seu nome é Ashna, mas esse não é um nome Kalapalo? Entretanto, sua
aparência não é de um guerreiro Kalapalo.

- Fui sim, irmão. Porém, um dia, assim como vocês, encontrei a passagem e nunca mais voltei.
Hoje sou um ser de Xamhur e Ashna é meu nome. O guerreiro e caçador não existe mais.
Antigamente, eu usava e me apropriava da natureza... hoje, compartilho dela.

- Escute! - interrompi - o portal tem caminho de volta?

- Sim, irmão, mas tudo depende de você. Todos aqui são livres, a única coisa que nos prende ou
nos liberta são nossas escolhas - respondeu Ashna.

- Por que falamos em uma língua e você em outra e, mesmo assim, compreendemos o que estamos dizendo um ao outro? - indaguei.

- Porque estamos compartilhando nossas mentes. A fala e os sons guturais são apenas necessidades de expressões físicas - respondeu Ashna.

Fiquei espantado em ver a boa expressão e a sabedoria daquele selvagem. Não resisti e perguntei:

- Você se expressa muito bem! Recebeu educação escolar?

- Não. Aqui todos somos iguais. Quando conversamos estamos ouvindo a essência um do outro, e não palavras certas ou erradas. Ouvimos os sentimentos. A diferença que pode haver é a nobreza de cada um, umas menores, outras maiores. Mas, qualquer gesto de nobreza é sinônimo de riqueza, por mais ínfimo que seja. É isso que nos torna iguais. Sei que tem muitas perguntas a fazer, mas, antes, preciso informá-los sobre questões essenciais de convivência com nosso plano.

- Primeiro: nunca matar, nem mesmo pela própria sobrevivência, nem animais ou vegetais. Mesmo assim, quando acontece de matarmos, somos banidos para Barhen, onde em um monastério somos doutrinados e, talvez, um dia possamos voltar e desfrutar da energia de Anágna. Nem todos aceitam essa reclusão e aí se tornam fugitivos, bandoleiros, como é o caso dos renegados ou desgarrados que, quase sempre, depois da primeira vez que matam passam a sentir prazer por tirar a vida e saciar as necessidades da carne. Assim sendo, vivem a corrupção e a presunção que justificam sacrificar um ser em benefício de si próprio.

- E se pisarmos, por exemplo, sem querer, em um inseto? - interrogou Eleanora.

- É um acidente tão grave quanto um homem, ao trabalhar com outro, deixar rolar sobre ele uma pedra que estava sendo transportada. Porém, é um acidente que pode acontecer independente do nosso desejo. Se não houve negligência ou intenção não há culpa. Portanto, se não viu o inseto não teve como evitar. Se viu e, assim mesmo pisou, você menosprezou uma vida tão importante quanto a sua. No mundo do qual viemos, o homem acredita que tudo que existe na natureza é para seu uso e prazer. Para ele não existe a troca. A terra lhe dá alimento e o homem a envenena; a água lhe mata a sede e o homem joga excrementos nela; a mata lhe dá o ar e o homem lhe dá o fogo; o cavalo lhe dá a montaria e o homem lhe dá o chicote. Aqui isso não acontece. Podemos montar sim, um animal, desde que nosso peso não lhe cause desconforto ou que ele se ofereça para ser nossa montaria. Não podemos tomar ou ser donos de qualquer ser, apenas compartilhamos com ele. Outra coisa importante é que os répteis continuam com suas características normais: as cobras picam, os jacarés e os crocodilos são carnívoros. Então, antes de tomarem banho em rios e lagoas, fiquem atentos - alertou Ashna.

- Aqui envelhecemos e morremos naturalmente? - indagou Constantino.

- Sim, envelhecemos e morremos. Essa é uma lei divina e o homem não pode dispor dela. Entretanto, aqui a prioridade, em tudo, é dos mais velhos. Existe um respeito muito grande por eles, o mais velho de cada bando, manada ou povo, é o rei. Quando o rei morre o outro mais velho assume o seu lugar. Outra coisa importante é que existem áreas protegidas pela Anágna, onde os renegados, com excessão dos répteis, não têm poder.

- Acredito que, por hora, o mais importante eu já tenha dito. De acordo com a nossa convivência, irei passando outras informações e tirando algumas dúvidas por parte de vocês. Agora vou deixá-los e, na hora da partida, para o paredão dos dragões, nos encontraremos.

- O quê? Dragões?!? Aqueles com asas e que cospem fogo? Não dá para desviar desse caminho? - quis saber desesperado.

- São amigos. Voaremos com eles até Xamhur, pois não existe outra forma de chegarmos até lá. Vocês vão gostar de voar, podem acreditar! - disse Ashna.

De repente, as feições de Constantino assumiram um ar de tristeza. Com as mãos trêmulas de emoção, tirou do bolso interno do paletó um foto e perguntou a Ashna:

- Por favor, Ashna, este jovem, por acaso, não apareceu por aqui?

Ashna franziu a testa e, com ar preocupado, respondeu:

- Mesmo que eu tivesse visto, rei-ancião, não poderia dizer-lhe, como, também, não diria se alguém chegasse aqui procurando por vocês. O passado do irmão que aqui chega não nos pertence. Ser encontrado ou não, é escolha de cada um. Entretanto, estando aqui, se desejar encontrar-lhe ele o fará.

Ashna levantou-se, naquele instante, e dirigiu-se à mata até desaparecer por entre ela.

A atitude inesperada de Constantino deixou-nos perplexos e um amontoado de perguntas surgiu em meu cérebro: por que teria escondido este segredo de todos nós? De quem seria a foto? Seria esse o motivo do velho milionário se meter em uma tamanha e dispendiosa aventura?

- Não nos disse nada sobre procurar alguém doutor Constantino. Por que fez segredo de informação tão relevante? - questionei com ar aborrecido.

- Procuro pelo meu filho. Desde que lhe dei o tal violão, ele mudou completamente; passou a ser consumido pelas canções que compunha e interpretava... uma grande inquietação tomou conta de sua alma, desprendeu-se dos bens materiais e passou a sofrer em demasia com a miséria humana. Tornou-se voluntário em grandes projetos sociais e ecológicos, mas, tudo que ele fazia, parecia não ser suficiente. Comentou, em uma ocasião, que quanto mais combatia as atrocidades humanas, mais cercado por elas estava. Certo dia, chegou até mim e disse que precisava encontrar sua verdade e que ela, provavelmente, estaria na origem daquele instrumento. Decidiu, então, que sairia a procura dela. Tentei, em vão, demovê-lo da idéia, mas, um dia, ele partiu e já se passaram cinco anos desde que o vi pela última vez.

- Por que não nos contou? - perguntou Cerrado.

- Tive medo que, sendo vocês especialistas, criassem resistência à busca, que optassem pela possibilidade de ele não ter tido sucesso em sua expedição. Entendem? Eu não suportaria essa jornada se as pessoas, nas quais depositei toda a minha esperança, não acreditassem que meu filho estivesse vivo - disse Constantino com a tristeza estampada em suas faces marcadas pelo tempo.

- Entendo seus motivos - socorreu Eleanora.

- Você é um grande homem, Constantino... dos melhores com os quais já convivi - falou Cerrado demonstrando admiração.

Senti-me envergonhado pelas reclamações que fiz durante toda a viagem e, também, pelas vezes que busquei, na minha conta bancária, justificativa para enfrentar os perigos. Mas sacudindo a cabeça pensei: "Para com isso, Montezuma. Daqui a pouco, você vai querer doar seu dinheiro para instituições de caridade. Nossa! O que esse lugar está fazendo comigo?"

Um comentário:

  1. Olá! Ainda não terminei esta leitura( volto depois). Mas, quero te dizer que ela me fez lembrar que tenho um romance indígena para terminar. Abraços. Gosto da maneira que escreves.

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